Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

sábado, 3 de março de 2012


Ansel Adams (EUA, 1902 - 1984), Moon and Half Dome, 1960.

ALGUMAS NOITES ESCUREÇO TEMPESTADE
VEJO ESTRELAS CADENTES NO TETO DO QUARTO
LONGE DO CÉU CHEIRANDO A VAPOR LILÁS
INFINDÁVEIS HORAS DE VIGÍLIA
TÃO LÚCIDA QUE TORTA VAGANTE PEDINTE
SECAS MÃOS DE RAÍZES SEM TERRA
VEIAS TRANSTORNANDO O CURSO DE UM VIVER
SEM DESENHO SEM PONTILHADOS PRÉVIOS
DESFILADEIRO ONDE CHOVEM RESTOS DE LUZ

sábado, 27 de agosto de 2011

Sábado


Flor Garduño - 1999.


No solo da pedra
Rosto das mãos pequenas e sujas
Agoras de repentes e sentido no bojo cavado fundo
Lugar que mente quando existe
Seguros e solto sem paradoxo de língua que não fala não seca não
Vou andando descompasso na areia do que falo

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Dois dias na semana


Geraldo de Barros (Brasil, 1923 – 1998). Cemitério do Tatuapé.

Não existe presente na cidade com o rio.
É um suspenso aerado, pedra pomes.
É o frio de sob superfície, o peso da mão na garganta.
O ar que sabe mais de cupins que de pássaros e peixes.
Os pássaros são mais do chão que do ar
Os pássaros acomodados e cheios de piolhos
da praça cheia de árvores, da cidade com o rio.
A cidade hostil a mim e a minha vida,
Enfurnada em sua existência circunspecta.
Essa cidade fechada em seus habitantes
que são as pedras dos barrancos,
as subidas íngremes das suas ruas.

São pontilhados os detalhes da palavra falada,
A palavra-argila da cidade com rio,
que só se sabe com o rio quando o avista na margem:
Seca e dura a cidade com o rio
E o que eu faço aqui é o que penso enquanto pego no sono,
o sono sempre tumultuado nas noites que não dormem,
Nas noites cheias de cães,
de latidos de cães, de ganidos de cães,
que são os habitantes perpétuos da cidade com o rio.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Peça


Chema Madoz. Agujaagua.

Para Lívia, Manoela, Marília e Ricardo

hoje me enrosquei em rascunhos. cobri o corpo com os pequenos pedaços de papel, tiras desamassadas, desalinho de sílabas. abri um pouco mais os olhos e deitei sobre os ombros um lenço finíssimo. saí assim para o vento poluído da cidade, saí como quem sai do teatro. Talvez fosse pelos olhos mais abertos. talvez por seguir uma linha imaginária transparente e carregada de sons que sentia fulgurantes entre os dedos maleáveis das mãos. Não sei muita coisa. O pouco que sei é o que conto: que por muitos quarteirões andei só, coberta de palavras aderidas ao corpo, com um lenço finíssimo nos ombros e os olhos mais abertos, seguindo o fio fulgurante que ouvia entre os dedos, andando pelas ruas antigas agudas varridas, como quem acaba de sair do teatro.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Interior 14: café


Paul Strandt (EUA, 1890 – 1976). Mr. and Mrs. Angus MacLean.

Levantei de manhã com vontade de tomar café em algum pé sujo que ainda não conhecia. Fui em direção ao lado pouco explorado da cidade. Passei ilesa por dois conhecidos, do terceiro não escapei, mas consegui ser rápida nas gentilezas da boa educação. Tinham me indicado um tal Esquinão, que logo que virei a rua descobri que não era na esquina e que se grafava Skinão, é claro. Entrei e pedi um café preto simples. Sentei do lado de fora, na mesa do canto esquerdo. Logo uma moça veio com o meu café: copo de bar extremamente mal lavado, com algum resto de alguma coisa indecifrável colada na boca de vidro lascado. Limpei com o guardanapo de papel e dei o primeiro gole: fraco, doce, e acompanhado de oito moscas hiperativas de tanto açúcar. Uma mulher gorda, com um coque enorme no cabelo grisalho e bigodes me cumprimentou com tanta intimidade que duvidei de minha memória que me dizia que nunca a tinha visto antes. Um senhorzinho pequeno, encolhido passou do outro lado da rua de mãos dadas com um menino careca, dando tanta risada, tão despreocupados os dois. Imaginei que eles moravam numa das casas velhas cheias de samambaias e gatos, e flores pequenas, cor de rosa que se enchem de abelhas pretas, e de repente comecei a sentir como se todos os velhos e velhas da cidade fossem meus avós e rissem comigo de mãos dadas, contando besteiras inesquecíveis. Entre anotações e leituras foram três cafés, os dois últimos com um pouco de sabão de coco, em espuma ou em pedaço, e uma manhã de sexta-feira sentimental/sentimentalista barata.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

desentendido


José Luis Alvarez Pupo (Cuba). DONT SAY WHAT I SAW, 2004.

sem saber o que
recuo no silêncio
lugar inusitado da forma
alargamento da incompreensão

sábado, 1 de janeiro de 2011

trechinho de conto inacabado


Chema Madoz (Espanha, 1958). Balanza.

Eu preciso me soltar de mim.
Escreveu um dia na máquina Olivetti verde - hecha en México.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

ditadinho


Flor Garduño (México, 1957). Pecado original.

entre cobras e lagartos
quem conserva a pele é camaleão

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Interior 13: Por aí


Pedro Polônio (Portugal). Saída, 2004.

Em frente a casa o sol pica cega arde. As senhoras de sombrinha sobem pelas pedras do calçamento lentas, joelhos subindo alto o passo, suspiros resignados em contraponto aos de impaciência das crianças que voltam da escola. No meio fio a água da limpeza da casa vizinha escorre pro rio sua velocidade brilhante. Da fumaça do meu cigarro as árvores da praça parecem tão pintadas quanto as paisagens do Brasil império. Pé ante pé os sons da vida se ajeitam num guardado de pensamento. Já não tenho língua com palavras a desenrolar. Tenho uma luz, um vento com cheiro. E uma distância imensa que aproxima quando sou.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

you


Berenice Abbot (EUA, 1898 -1991) Old Post Office and Troely, 1938.

you don’t know me
e o ônibus segue torto
a cabeça que apóia o queixo na minha
olha pela janela
vagando por pastos casas bois
e olhos menores de três ou quatro anos atrás